sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

POBRE BRASIL VERMELHO

Desafios do governo Dilma:
saúde

Prioridade para os brasileiros, setor soma queixas e desafia nova gestão.
Série do G1 analisa os principais desafios do próximo governo federal.

Thiago Guimarães Do G1, em São Paulo
 
Dorcas dos Santos aguarda atendimento no Hospital do Servidor Público Municipal, em São Paulo
A aposentada Dorcas dos Santos, 57 anos,aguarda atendimento no Hospital do Servidor
Público Municipal, em SP: "Isso está um caos."(Foto: Thiago Guimarães/G1)
 
Uma hora da tarde em São Paulo. A auxiliar de enfermagem aposentada Dorcas dos Santos, 57, aguarda atendimento no pronto-socorro do Hospital do Servidor Público Municipal.

A emergência do hospital atende, além de servidores, outros usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) na região central da capital paulista. A fila é organizada e cerca de 20 pessoas estão à frente da auxiliar de enfermagem, que voltara a sentir dores no tórax após um acidente de carro em setembro.

“Isso está um caos. Se é difícil para mim, que sou servidora, imagine para quem está no SUS [o tempo todo]”, reclama.

A queixa expõe sobrecarga de hospitais e prontos-socorros públicos no país. Subfinanciados, hospitais reduzem a oferta e a qualidade dos serviços, com prejuízo para o cidadão. Diante dos problemas do SUS, que em tese tem obrigação de atender a todos, avança no país a saúde privada, para atender os 23% da população (44 milhões de pessoas) que podem pagar por um plano.

Bem ou mal atendidos, os brasileiros elegem a saúde como prioridade número, de acordo com pesquisa Ibope realizada em junho deste ano a pedido do Jornal Nacional. Na ocasião, 41% dos entrevistados disseram que o assunto é sua maior preocupação.
 
A presidente eleita Dilma Rousseff (PT) concentrou propostas para o setor em ações previstas na segunda fase do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC).

Prometeu, por exemplo, como resposta à superlotação das emergências dos grandes hospitais, construir 500 Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e 8.694 Unidades Básicas de Saúde (UBSs) pelo país, ao custo de R$ 8,1 bilhões.

As UPAs são as unidades intermediárias entre os postos de saúde e os hospitais, que se propõem a desafogar o atendimento em hospitais do SUS.

Especialistas consultados pelo G1 aprovam o investimento nessas unidades, mas alertam que as UPAs não podem substituir a atenção básica, aquela que vai do posto de saúde ao Programa de Saúde da Família (PSF) e permite solucionar a maior parte dos problemas.

“Somos favoráveis à construção de UPAs, mas desde que elas não sejam a porta de entrada do sistema. Senão você estará fazendo apenas paliativos”, afirma Antônio Carlos Nardi, presidente do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems).

Para Gonzalo Vecina, ex-diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e atual superintendente corporativo do hospital Sírio-Libanês (SP), a ênfase nas UPAs não pode implicar em perda do foco na atenção primária. “Se tirar o paciente da atenção básica, será um desvio que vai custar caro e desmontará o projeto de atenção básica”, diz Vecina, para quem é preciso manter a aposta no PSF.
Situação de lotação registrada em fevereiro de 2010 no Hospital Agamenon Magalhães, em Recife, referência em cardiologia na região
Situação de lotação registrada em fevereiro de 2010 no hospital Agamenon Magalhães, em
Recife, referência em cardiologia na região.(Foto: Sindicato dos Médicos de Pernambuco)
PSF e atenção básica

Formulado em 1994, o PSF, que Dilma prometeu reforçar, busca substituir o modelo focado no atendimento hospitalar por um sistema baseado em prevenção e cuidados com a saúde.

Cada equipe do programa, formada em tese por médico, enfermeira, auxiliar, dentista e agente comunitário, responde pelo acompanhamento de até 4.500 pessoas em uma determinada área.

Em 2008, a cobertura do PSF superou 50% da população brasileira, chegando a 96,5 milhões de pessoas, segundo o IBGE. Concentra-se no Nordeste (67,7% dos habitantes cadastrados), enquanto é menor no Sudeste (35,9%), região em que predomina a cultura da alta complexidade, em detrimento da saúde preventiva.

O avanço do PSF esbarra na falta de médicos generalistas, peças chave no atendimento à saúde básica e cuja formação não é priorizada pelas faculdades de medicina, aponta Nardi, do Conasems. “Há dificuldades de completar equipes do PSF em áreas remotas. As universidades têm que formar mais força de trabalho para o SUS”, afirma o dirigente.

A qualidade do gasto em saúde no Brasil é ruim. Temos que inverter essa lógica"
Gonzalo Vecina
superintendente do hospital Sírio-Libanês
 
O nó do financiamento
O fluxo de recursos para a saúde representa outro gargalo do sistema. O tema é recorrente desde a derrubada pelo Senado, em 2007, da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF).

Voltou com tudo após a eleição de Dilma, quando governadores eleitos, de olho em novas receitas, opinaram a favor do retorno do tributo. Durante a campanha, Dilma evitou defender a criação de um novo imposto. No Congresso, tramita uma proposta para a criação de nova fonte de receitas para o setor, a Contribuição Social para Saúde (CSS), versão repaginada do imposto do cheque.

A discussão envolve ainda a regulamentação da emenda 29, aprovada em 2000, e que fixou percentuais mínimos de gastos em saúde para União, estados e municípios. Sem financiamento definido, não há consenso legislativo para aprová-la. Sem regulamentação, há diferentes interpretações sobre o que é ou não despesa em saúde.

Com ou sem novas fontes ou garantias de receita, a distorção do financiamento da saúde no país é um desafio a ser encarado pelo governo Dilma, afirmam especialistas. O Brasil investe hoje cerca de 8% do PIB em saúde, índice referente aos gastos totais de governos, famílias e empresas empregadoras do setor. Mas o gasto público responde por apenas 3,5% do PIB – o restante são gastos de famílias e empresas.

No total, quase um quarto dos gastos com saúde no Brasil se destinam aos 23% da população que têm plano de saúde, e o sistema público ainda tem que atender os casos que a saúde suplementar não contempla.

“Na maioria dos países desenvolvidos, o gasto público representa, em média, 70% do total. E a qualidade do gasto no Brasil é ruim. Temos que conseguir inverter essa lógica”, afirma Gonzalo Vecina.

Especialista vê ausência de política de estado
Embora os obstáculos estejam à vista, há quem avalie que parte do problema passa pela falta de projeto, como no caso da última campanha eleitoral.

“Não foi apresentado um projeto para a saúde no Brasil, mas um conjunto de obras e números. O principal gargalo é que o SUS é visto como sistema para pobres, e que, portanto, não é único. O principal desafio a ser enfrentado é a política de saúde, se vamos oferecer às classes C e D planos baratos de R$ 40 ou vamos ter o SUS”, afirma Lígia Bahia, doutora em saúde pública e pesquisadora do Laboratório de Economia da Saúde da UFRJ.

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